sexta-feira, 29 de maio de 2009

ENCARNADO (possuido?)

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Esse ente que não sou eu
mas que vai comigo
fustiga-me noite adentro
anda aflito pensando sem rumo
não tem paz nem fadiga
enquanto não esboça palavras
empunha pena

O criar é lento e doloroso
O corpo padece em cansaço
Quando se vai é tarde
já consumiu mais vida
deixa pouco para o outro dia

Não sei quando volta
nem sei se foi da última vez
sinto apenas desfalecer os braços
fechar os olhos, amolecer os ombros
a minha luz se apaga

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Lamento Blue

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Oh! Cidade de pedra-blue
povo do coração a ferro
nem a lembrança do crepúsculo cintilante
tardes cósmicas, empoeiradas
chapéu de estrelas
sobre cadeia de montanhas
barrando o horizonte
levam-me de volta a tí
alto do Campestre
andar à sombra de montanhas no verão
sob neblina no inverno abandonado das ruas

O Pico ainda explode ?
Só pés-de-pomba não têm mêdo
panelas tremem, chão retumba às dez horas
um manto finíssimo e escuro cobre as casas
sobrevoa telhados e se estica
é pó brilhante, não é ouro, nem purpurina
é fécula de ferro

Dia e noite homens esfolam o solo
a vida escorre morro abaixo
em grandes comboios até o mar
Locomotivas tristes apitam e se despedem
cada vez que levam um pouco da cidade
Um abismo se cava no seio da mãe gentil
O buraco engole, no lugar, seu povo

terça-feira, 26 de maio de 2009

REPÚBLICA DOS PARDOS

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Pele parda
Olhos rajados de pouco sono
ansiedade de esperar o previsível
Homem simples
gente do povo
Viver de salário
frango aos domingos
Missa de roupa nova
horário nobre, acordar às cinco
comer pão, beber cachaça
fumar cigarros, fazer churrasco
carne na brasa queimando o tempo
arroz, vinagrete, embriaguez,
futebol e cama
Feriado na praça, cerveja no bar
Outro dia um homem falava
sobre tudo isso mudar. Porque ?

sábado, 23 de maio de 2009

AO PORTAL

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Mais do que apenas ser:
crer ou não crer ?
emparedado entre fé e ceticismo
fiz do mais puro realismo
minha religião
e de curso um purismo
afeta-me como jargão

realismo representa
reconhecimento e superação
verdade como ela se apresenta
ou o que vem em substituição
em nova verdade se estabelece
nesse moto perpétuo
donde abandona e reconhece
realismo é perene e fátuo

Nesse viver orbital
atrás da verdade absoluta
Deus me aparece mortal
numa forma anacoluta
sempre que o alcanço retorno ao início

Ateísmo professa desperdício
sem Deus e ressureição
sem espírito e reencarnação
morte é mera descarga do ser
esperá-la é o supremo suplício
o indivíduo ao morrer
repassa sua herança
mas elimina o seu legado
escarra na bem-aventurança
do espírito que lhe foi dado
se não se leva o acúmulo
de apuro e aprimoramento moral
de que serve tudo num túmulo
se não há para atravessar nenhum portal ?

Fé no seu amplo pórtico
abriga imponderabilidades
que no espelho agnóstico
refletem vulnerabilidades
as mais fúteis
entretanto por mais inúteis
são um anteparo e conforto
para o impacto do nada
num corpo humano morto

sexta-feira, 22 de maio de 2009

TECNOVIOLÊNCIA

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Era um tempo de certezas
um tempo de tecnologia
principalmente
de violência
a era da tecnoviolência
a vida e a morte, guerreiras
eternamente adversárias
abandonaram o combate frontal
a vida continuava sendo a razão
da morte
a morte já era uma opção
da vida
tornou-se também princípio da vida

quinta-feira, 21 de maio de 2009

MEDIOCRIDADE

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Mediocridade:
tu que és conteúdo
dos desejos mais íntimos do homem
prospera sem sexo
invade os sonhos
sujeita o indivíduo
dá-lhe uma patética esperança de ser feliz
responde:
viveremos sempre sob tua égide ?
Serás o eterno curso da história ?

quarta-feira, 20 de maio de 2009

ARENA ROMANA

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Ah, vida!
A tua arena faz vítimas
No duelo romano
os leões comem as entranhas dos gladiadores
satisfazem as galeras afoitas de desgraças


O que temer de ti
senão a luta sangrenta do mais forte?
Tu e tuas feras impiedosas, famintas
rasgam, no tempo, as carnes
secam dos sonhos a fonte.


Só homens fortes vencem-te
tudo o mais são desilusões
Mesmo a dama na tribuna de honra
com o seu amor tolo e frágil
ama a morte ao fraco

À hora do combate
vale a força e astúcia
Dia-a-dia, homens se revezam
com seus corpos mortais
ao consumo de tuas garras e bocas.
Assim prossegue teu curso
inerte para a morte

sábado, 16 de maio de 2009

POR DENTRO

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Teu coração. Oráculo de um amor soturno
Teu amor. Paixão sobeja de tempos ímpios
Pelas tuas veias corre um sentimento pastoso.
Teu sangue cria limo.

Sinal dos tempos. É a velhice de turno.
Alma impura. Deixa escorrer dos lábios.
E o mais é este pesar pegajoso.
Teu ego padece em mimo.

PRIMEIRO DE JUNHO

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O amor chegava antes da educação
no Primeiro de Junho
já no terceiro ano eram dois amores
pávidos
impossíveis
nunca pude revelar
agora ainda titubeio
confesso aos poucos

Amava minha mestra Dona Míriam
seu olhar doce de mestra-mãe
seu nome moderno e pianíssimo
amava-a leve no vento
a fragância cashimir
amava-a sem ciúmes
todos os dias
do homem da rural-willis

Amava uma coleguinha
um amor fundamental
e amava em segredo
conforme convem a um jovem amante
na idade constrangedora de revelar
aos amigos e à própria amada o seu amor

Mas da minha escola querida
esse nome-calendário
esse lugar-data
nunca soube significado
por isso te recordo
e te comemoro

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Janela de Trem

Nada existe no amanhã
a não ser um prolongamento de hoje
e de lá se vê sempre ontem :
futuro é o passado que se distância
Janela de trem
Quem vive, vive o passado
se ama, ama o passado
tanto mais feliz
quanto mais foi bom o passado

quinta-feira, 7 de maio de 2009

MEMORIAL

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Mamãe era uma mulher forte!
Não é preciso muita altura
nem muito peso para ser forte.
Metro e meio de estatura
é suficiente para enfrentar verdades tête-a-tête
manter a integridade
ter um grande e justo coração

Mamãe tinha pele moreno-sofrida
cor de gente mal nascida, parto de parteira
Olhos castanhos-vividos, meio-brilho, meio-opacos
Quem a conheceu, como nós, sabia
da imensa capacidade de amar, que tinha.
Há muitas maneiras de amar
O seu era rijo, seco
dominante, sincero, mudo

Apesar do queixo duro
Postura grave
Semblante sisudo
contrariar-lhe as vontades
magoar-lhe os instintos
desafiar-lhe a compreensão e cumplicidade
Não foi difícil
Coisas de filhos

Quisera, ainda em seu útero
herdar a magnitude do seu caráter
a firmeza das suas convicções
traço forte da sua vida

Dela, me acompanhara apenas reminiscências étnicas
o vazio da sua ausência
imensa saudade

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Igreja de São José

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Vós que sois Pai de Deus
São José
Responde-me santo-operário
porque passamos à vossa porta
frente a vossa igreja
encontramo-la sempre fechada ?

Vossa igreja
São José
esteve sempre aberta
retumbando orações
abrigando manifestantes-refugiados
sustando injustiças, prisões
vosso povo na luta, vosso povo rebelde
detendo cavalos e sabres e bombas

São José
visita espontânea, extemporânea
não se pode fazer
orações de fiéis não são recebidas
senão em horas marcadas
missas vespertinas, dominicais,
matinais (precisa confirmá-las) para ali estar
sem direito a estar à sós convosco

Nós cristãos
São José
ressentimo-nos da companhia
de nossos santos (devotos)
A fé se enfraquece
renovar é preciso ser convosco
ato contínuo da esperança

Dá para imaginar
São José
meu santo-povo
A violência violou também vosso recesso
intimidou até os santos
portas fechadas
crentes, aflitos, gratos, convertidos
pedirão perdão e misericórdia
em audiências pré-marcadas

Prepara, então
para nós vossa agenda
São José

terça-feira, 5 de maio de 2009

Envelhecer

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Envelhecer tem sabor
sabor de guardado
Pistas do envelhecimento:
rugas pipocando
gorovinhas, carquilhas
coluna doída
pernas fracas
pinto mole

De envelhecer dizem:
colecionar caprichos
fazer inimigos

Quando se começa a envelhecer ?
Aos cinquenta anos.
Lá inicia uma nova vida:
vida de velho

segunda-feira, 4 de maio de 2009

O ESPÍRITO E O CONSUMO

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Quero
logo consumo
quanto mais consumo
menos espírito

Penso
logo introspecto
quanto mais introspecto
menos matéria

Matéria consome espírito
espírito não consome matéria
devir do desequilíbrio do ser

Não há conceito de simetria
nem lugar comum
tampouco excludência

Consumir com dignidade
conceito insurgente
para não consumir o espírito

Sinto muito pelos puritanos
o consumo é o fio da existência humana
senão é o consumo da vida

Consumo do corpo
consumo da terra
consumo do outro

Se não se detiver ( o homem)
consumo do universo
consumo de Deus

Esse é o espírito
o espírito do homem
consumo eterno

domingo, 3 de maio de 2009

VELHA ESPERANÇA

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Nunca tive gado
nunca tive ouro
nem dinheiro
nem fazenda
Fortuna nunca me encontrou
pelo caminhos
Essa rica senhora
benfazeja e benfeitora
nunca me viu
na multidão de oprimidos
senão... preteriu
e minha vez nunca houve

Mas existe esperança
já tem data marcada
idade certa e até lei

Quando fizer sessenta e cinco anos
se não for rico
também não serei pobre
não andarei a pé
viajarei gratuitamente se puder
nem filas enfrentarei
ganharei ao menos um salário mínimo
para viver
remédios para minhas dores
uma cadeira ao sol da manhã
muitas recordações na cabeça
para gastar até os fins dos dias

Eu serei feliz
se não for ranzinza
se não for inválido
se não for viúvo
se puder dançar...
e se não mudar a lei

sexta-feira, 1 de maio de 2009

CAOS DA CRIATIVIDADE

a cabeça vazia de repente transborda
como anúncio de choro
mereja no olho
palavras vão pingando uma a uma
que não as detém nenhuma borda
começam a gritar em coro
eu só as liberto não escolho
Esse tormento todo dia
já repudiei, não quero !
não queria essa merda de poesia
não invoco, procuro, espero
ela vem doida de ser
doida de ser poesia
desesperado busquei mais subjetivo parecer
esse acometimento
assiduidade
capaz de uma pseudo mediunidade
caso de parapsicologia
também loucura
entricheirada in falsa postura
de bom moço
e ouça:
a rima cairá no fundo do poço