sexta-feira, 29 de maio de 2009

ENCARNADO (possuido?)

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Esse ente que não sou eu
mas que vai comigo
fustiga-me noite adentro
anda aflito pensando sem rumo
não tem paz nem fadiga
enquanto não esboça palavras
empunha pena

O criar é lento e doloroso
O corpo padece em cansaço
Quando se vai é tarde
já consumiu mais vida
deixa pouco para o outro dia

Não sei quando volta
nem sei se foi da última vez
sinto apenas desfalecer os braços
fechar os olhos, amolecer os ombros
a minha luz se apaga

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Lamento Blue

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Oh! Cidade de pedra-blue
povo do coração a ferro
nem a lembrança do crepúsculo cintilante
tardes cósmicas, empoeiradas
chapéu de estrelas
sobre cadeia de montanhas
barrando o horizonte
levam-me de volta a tí
alto do Campestre
andar à sombra de montanhas no verão
sob neblina no inverno abandonado das ruas

O Pico ainda explode ?
Só pés-de-pomba não têm mêdo
panelas tremem, chão retumba às dez horas
um manto finíssimo e escuro cobre as casas
sobrevoa telhados e se estica
é pó brilhante, não é ouro, nem purpurina
é fécula de ferro

Dia e noite homens esfolam o solo
a vida escorre morro abaixo
em grandes comboios até o mar
Locomotivas tristes apitam e se despedem
cada vez que levam um pouco da cidade
Um abismo se cava no seio da mãe gentil
O buraco engole, no lugar, seu povo

terça-feira, 26 de maio de 2009

REPÚBLICA DOS PARDOS

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Pele parda
Olhos rajados de pouco sono
ansiedade de esperar o previsível
Homem simples
gente do povo
Viver de salário
frango aos domingos
Missa de roupa nova
horário nobre, acordar às cinco
comer pão, beber cachaça
fumar cigarros, fazer churrasco
carne na brasa queimando o tempo
arroz, vinagrete, embriaguez,
futebol e cama
Feriado na praça, cerveja no bar
Outro dia um homem falava
sobre tudo isso mudar. Porque ?

sábado, 23 de maio de 2009

AO PORTAL

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Mais do que apenas ser:
crer ou não crer ?
emparedado entre fé e ceticismo
fiz do mais puro realismo
minha religião
e de curso um purismo
afeta-me como jargão

realismo representa
reconhecimento e superação
verdade como ela se apresenta
ou o que vem em substituição
em nova verdade se estabelece
nesse moto perpétuo
donde abandona e reconhece
realismo é perene e fátuo

Nesse viver orbital
atrás da verdade absoluta
Deus me aparece mortal
numa forma anacoluta
sempre que o alcanço retorno ao início

Ateísmo professa desperdício
sem Deus e ressureição
sem espírito e reencarnação
morte é mera descarga do ser
esperá-la é o supremo suplício
o indivíduo ao morrer
repassa sua herança
mas elimina o seu legado
escarra na bem-aventurança
do espírito que lhe foi dado
se não se leva o acúmulo
de apuro e aprimoramento moral
de que serve tudo num túmulo
se não há para atravessar nenhum portal ?

Fé no seu amplo pórtico
abriga imponderabilidades
que no espelho agnóstico
refletem vulnerabilidades
as mais fúteis
entretanto por mais inúteis
são um anteparo e conforto
para o impacto do nada
num corpo humano morto

sexta-feira, 22 de maio de 2009

TECNOVIOLÊNCIA

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Era um tempo de certezas
um tempo de tecnologia
principalmente
de violência
a era da tecnoviolência
a vida e a morte, guerreiras
eternamente adversárias
abandonaram o combate frontal
a vida continuava sendo a razão
da morte
a morte já era uma opção
da vida
tornou-se também princípio da vida

quinta-feira, 21 de maio de 2009

MEDIOCRIDADE

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Mediocridade:
tu que és conteúdo
dos desejos mais íntimos do homem
prospera sem sexo
invade os sonhos
sujeita o indivíduo
dá-lhe uma patética esperança de ser feliz
responde:
viveremos sempre sob tua égide ?
Serás o eterno curso da história ?

quarta-feira, 20 de maio de 2009

ARENA ROMANA

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Ah, vida!
A tua arena faz vítimas
No duelo romano
os leões comem as entranhas dos gladiadores
satisfazem as galeras afoitas de desgraças


O que temer de ti
senão a luta sangrenta do mais forte?
Tu e tuas feras impiedosas, famintas
rasgam, no tempo, as carnes
secam dos sonhos a fonte.


Só homens fortes vencem-te
tudo o mais são desilusões
Mesmo a dama na tribuna de honra
com o seu amor tolo e frágil
ama a morte ao fraco

À hora do combate
vale a força e astúcia
Dia-a-dia, homens se revezam
com seus corpos mortais
ao consumo de tuas garras e bocas.
Assim prossegue teu curso
inerte para a morte

sábado, 16 de maio de 2009

POR DENTRO

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Teu coração. Oráculo de um amor soturno
Teu amor. Paixão sobeja de tempos ímpios
Pelas tuas veias corre um sentimento pastoso.
Teu sangue cria limo.

Sinal dos tempos. É a velhice de turno.
Alma impura. Deixa escorrer dos lábios.
E o mais é este pesar pegajoso.
Teu ego padece em mimo.

PRIMEIRO DE JUNHO

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O amor chegava antes da educação
no Primeiro de Junho
já no terceiro ano eram dois amores
pávidos
impossíveis
nunca pude revelar
agora ainda titubeio
confesso aos poucos

Amava minha mestra Dona Míriam
seu olhar doce de mestra-mãe
seu nome moderno e pianíssimo
amava-a leve no vento
a fragância cashimir
amava-a sem ciúmes
todos os dias
do homem da rural-willis

Amava uma coleguinha
um amor fundamental
e amava em segredo
conforme convem a um jovem amante
na idade constrangedora de revelar
aos amigos e à própria amada o seu amor

Mas da minha escola querida
esse nome-calendário
esse lugar-data
nunca soube significado
por isso te recordo
e te comemoro

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Janela de Trem

Nada existe no amanhã
a não ser um prolongamento de hoje
e de lá se vê sempre ontem :
futuro é o passado que se distância
Janela de trem
Quem vive, vive o passado
se ama, ama o passado
tanto mais feliz
quanto mais foi bom o passado

quinta-feira, 7 de maio de 2009

MEMORIAL

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Mamãe era uma mulher forte!
Não é preciso muita altura
nem muito peso para ser forte.
Metro e meio de estatura
é suficiente para enfrentar verdades tête-a-tête
manter a integridade
ter um grande e justo coração

Mamãe tinha pele moreno-sofrida
cor de gente mal nascida, parto de parteira
Olhos castanhos-vividos, meio-brilho, meio-opacos
Quem a conheceu, como nós, sabia
da imensa capacidade de amar, que tinha.
Há muitas maneiras de amar
O seu era rijo, seco
dominante, sincero, mudo

Apesar do queixo duro
Postura grave
Semblante sisudo
contrariar-lhe as vontades
magoar-lhe os instintos
desafiar-lhe a compreensão e cumplicidade
Não foi difícil
Coisas de filhos

Quisera, ainda em seu útero
herdar a magnitude do seu caráter
a firmeza das suas convicções
traço forte da sua vida

Dela, me acompanhara apenas reminiscências étnicas
o vazio da sua ausência
imensa saudade

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Igreja de São José

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Vós que sois Pai de Deus
São José
Responde-me santo-operário
porque passamos à vossa porta
frente a vossa igreja
encontramo-la sempre fechada ?

Vossa igreja
São José
esteve sempre aberta
retumbando orações
abrigando manifestantes-refugiados
sustando injustiças, prisões
vosso povo na luta, vosso povo rebelde
detendo cavalos e sabres e bombas

São José
visita espontânea, extemporânea
não se pode fazer
orações de fiéis não são recebidas
senão em horas marcadas
missas vespertinas, dominicais,
matinais (precisa confirmá-las) para ali estar
sem direito a estar à sós convosco

Nós cristãos
São José
ressentimo-nos da companhia
de nossos santos (devotos)
A fé se enfraquece
renovar é preciso ser convosco
ato contínuo da esperança

Dá para imaginar
São José
meu santo-povo
A violência violou também vosso recesso
intimidou até os santos
portas fechadas
crentes, aflitos, gratos, convertidos
pedirão perdão e misericórdia
em audiências pré-marcadas

Prepara, então
para nós vossa agenda
São José

terça-feira, 5 de maio de 2009

Envelhecer

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Envelhecer tem sabor
sabor de guardado
Pistas do envelhecimento:
rugas pipocando
gorovinhas, carquilhas
coluna doída
pernas fracas
pinto mole

De envelhecer dizem:
colecionar caprichos
fazer inimigos

Quando se começa a envelhecer ?
Aos cinquenta anos.
Lá inicia uma nova vida:
vida de velho

segunda-feira, 4 de maio de 2009

O ESPÍRITO E O CONSUMO

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Quero
logo consumo
quanto mais consumo
menos espírito

Penso
logo introspecto
quanto mais introspecto
menos matéria

Matéria consome espírito
espírito não consome matéria
devir do desequilíbrio do ser

Não há conceito de simetria
nem lugar comum
tampouco excludência

Consumir com dignidade
conceito insurgente
para não consumir o espírito

Sinto muito pelos puritanos
o consumo é o fio da existência humana
senão é o consumo da vida

Consumo do corpo
consumo da terra
consumo do outro

Se não se detiver ( o homem)
consumo do universo
consumo de Deus

Esse é o espírito
o espírito do homem
consumo eterno

domingo, 3 de maio de 2009

VELHA ESPERANÇA

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Nunca tive gado
nunca tive ouro
nem dinheiro
nem fazenda
Fortuna nunca me encontrou
pelo caminhos
Essa rica senhora
benfazeja e benfeitora
nunca me viu
na multidão de oprimidos
senão... preteriu
e minha vez nunca houve

Mas existe esperança
já tem data marcada
idade certa e até lei

Quando fizer sessenta e cinco anos
se não for rico
também não serei pobre
não andarei a pé
viajarei gratuitamente se puder
nem filas enfrentarei
ganharei ao menos um salário mínimo
para viver
remédios para minhas dores
uma cadeira ao sol da manhã
muitas recordações na cabeça
para gastar até os fins dos dias

Eu serei feliz
se não for ranzinza
se não for inválido
se não for viúvo
se puder dançar...
e se não mudar a lei

sexta-feira, 1 de maio de 2009

CAOS DA CRIATIVIDADE

a cabeça vazia de repente transborda
como anúncio de choro
mereja no olho
palavras vão pingando uma a uma
que não as detém nenhuma borda
começam a gritar em coro
eu só as liberto não escolho
Esse tormento todo dia
já repudiei, não quero !
não queria essa merda de poesia
não invoco, procuro, espero
ela vem doida de ser
doida de ser poesia
desesperado busquei mais subjetivo parecer
esse acometimento
assiduidade
capaz de uma pseudo mediunidade
caso de parapsicologia
também loucura
entricheirada in falsa postura
de bom moço
e ouça:
a rima cairá no fundo do poço

quinta-feira, 30 de abril de 2009

SONETO DO COMEÇO DE UM VERÃO

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Branco vazio
Branco vazio
Branco vazio
Branco vazio

Dia de sol
Dia de sol
Dia de sol
Dia de sol

Crepúsculo sadio
Crepúsculo sadio
Crepúsculo sadio

noite de ébano
noite de ébano
é verão

quarta-feira, 29 de abril de 2009

QUASE MILAGRE !

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Parido num parto difícil
progênie negra, nativa, européia
duvidosa
vasta prole o seu bando
cresceu pelos campos
a correr do sarampo
e da peste que aleija meninos

Quase milagre I

Desgraçado!
mil vezes desgraçado.

a vida lhe deu tréguas curtas demais
para descansar
longas batalhas
longas demais
para vencer

Quase milagre

Desgraçado !
Teu fardo é chumbo

Teu caminho é pedra
Horizonte é chuva

Não há planícies só montanhas
Não há descanso só jornada
E ainda vives !

Quase milagre

terça-feira, 28 de abril de 2009

PENSANDO ALTO !

Ai, como eu queria !
como eu queria !
que lesses minha poesia

A crítica como teu beijo
ao meu amor vadio
esse desejo sectário
um trovar de varejo
contexto tardio
do meu imaginário

Ai, como eu queria !
como eu queria !
que entendesses minha poesia

Teu olhar meu reflexo
enquanto revolvo escombros
a procurar um nexo
para essa culpa sobre os ombros
e para o fundo do poço gritas:
te perdôo! para que te agitas ?

Ai, como eu queria !
como eu queria !
que compreendesses minha poesia

Teu corpo me premia
sob uns lençois de seda e fama
o conto, a prosa, a poesia
e como quem verdadeiramente ama
tu me abraças e eu adormeço
num sonho de volta ao começo

Ai, como eu queria!
como eu queria!
que soubesses que é para tí minha poesia

domingo, 26 de abril de 2009

SOBRE UMA ESTRELA

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No vasto céu avistei uma estrela brilhante
e ao querer de longe vê-la
percebi algo intrigante nessa estrela:
parecia emitir um sinal, um apelo
por isso não se mostrava mais cintilante
Passei a observá-la com desvelo
emitindo também sinais, cá distante
pois essa estrela, de repente
tornou-se luminosamente deslumbrante.

Quis perguntar, mormente
por quem brilhas estrela ?
Receoso, calei-me imediatamente
não tinha o direito de constrangê-la
pois brilho de estrela pertence a ninguém
coração de estrela é sempre de alguém

sábado, 25 de abril de 2009

AI, CHORA !

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Chora, tuas lágrimas doídas
teu pranto sentido
teu riso farto

Chora, este último amor que tens
porque nunca mais amaremos assim
intensamente, eternamente

derrama o teu pranto no conforto do meu colo
pela quantidade que choras
tem volume teu sentimento

choras porque choras, pede teu coração
aflito porque choras, dor no peito
e não morras de olhos secos

sexta-feira, 24 de abril de 2009

TRAGÉDIA À GREGA

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As aríetes estão aos portões
o inimigo ganha as muralhas
meu reino sucumbe
devo capitular ?

Estou só sem defesa
Non tali auxílio
nec defensoribus istis tempus eget
glória de Pirro

Pequei o pecado de Saul
Os mortos me negligenciaram socorro
Tantaene animis coelestibus irae ?

Misericórdia dos vencedores
guardo dignidade
para uma última honra.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

EXTREMOS

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Extremidade, extremor
extrema-unção, extremismo
extremado, extremamente
extrema-direita
extrémité
extrema-esquerda
extremidad
extreme
extrême
extrem
à parte o sufixo
esse radical que fica
sempre leva à ponta.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

DESCONSTRUIR

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Quando ordenar não constrói
Consertar não corrige
recolocar não conserta
organizar não ordena
transformar não muda
impulsionar não avança

Considere desconstruir

Repare: é a estrutura

terça-feira, 21 de abril de 2009

Mar da Vida

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Mar da Vida

Agora passam medos
ufanos avançam destemidos
longe se foram os sonhos
equívocos atrás dos anos

Passam anos
passam sonhos
lá vai a vida deslizando
num mar calmo de ilusões

E, pois, neste mar azul
de poucas tempestades
navegam angústias
afogam mágoas

domingo, 19 de abril de 2009

Amor e Destino de Jussara

Jussara definhava. Acamou e não se levantou mais. Sua mãe e suas irmãs se revezavam em cuidados e vigília. Tentavam animá-la com convites de passeios, festas, caminhadas, missas, novenas, mas nada de Jussara reagir. Médico fora chamado. Fizera exames diversos, de todos os tipos. Nada encontrara, a não ser uma profunda depressão. Uma falta de vontade de viver. E Jussara não cooperava. Trancou-se num silêncio profundo, alimentando-se precariamente, tratando o corpo com desprezo.
Sua mãe, viúva de longa data, afogava-se em prantos demorados, culpando-se pela incapacidade de ajudar sua filha caçula a superar aquela angústia mortal. Lamentava-se ainda, de ocupar-lhe o tempo com tarefas domésticas e outras que o pai, falecido deixou. Jussara dedicou boa parte de sua juventude a acompanhar e amparar a mãe, e restante da família sempre que era solicitada, ajudando na educação dos sobrinhos, intervindo em desavenças, organizando festas. O tempo de Jussara passara e com ele a beleza, a juventude; se bem que ela ainda era uma mulher formosa, com dotes físicos admiráveis, apenas maltratada pela corrosão dos anos. Todas as suas irmãs – eram três: Rosário, Selene e Margarida – se casaram e geraram filhos, mas Jussara não. Disso Dona Otília, a mãe, se ressentia; tinha receio de vir a morrer e não cumprir a sua missão mais sagrada em vida: encaminhar e casar suas filhas. Jussara tornou essa tarefa mais laboriosa quando, ainda adolescente, se apaixonou por Olavo, um moço convicto de sua solterice, namorador, difícil de “fisgar” no anzol das moças. Também Olavo permanecia solteirão, mantendo um compromisso de namoro antigo, sem fidelidade, com uma donzela de nome Cremilda.
Todos sabiam da paixão não correspondida que Jussara nutria por Olavo, até ele próprio, porém nunca houve, da parte de Jussara, iniciativa em direção a Olavo. Apenas aquela adoração obcecada, de fazê-la tremer na presença dele. Ele a tratava com respeito e educação, quase carinho. Ela alimentava esperanças por conta desses modos do moço. Os dois naquela altura, aos 35 anos de idade, já reservavam o futuro de suas vidas para o que lhes poderia oferecer o destino sem muitas surpresas.
Jussara, naquele estado de moribunda, passou a suspirar constantemente, sem dizer uma palavra sequer. Sua mãe e irmãs acharam por bem chamar um padre para benzer o resto de vida e o espírito que ainda lhe habitavam o corpo. Veio o Vigário a preparar o ritual e convocar toda a família para as orações de ocasião. Todos consternados compareceram e se esmeraram em súplicas por Jussara.
As orações já findavam quando Jussara começou a se debater levemente, levando as mãos ao peito, apertando o coração e a suspirar fortemente. O Vigário, temendo que fossem as últimas manifestações daquela pobre vida preparou-se para a extremunção, precavido que era em seu ofício.
Entretanto, para o completo espanto dos presentes, Jussara começou a balbuciar algo. O Vigário se aproximou, imaginando que a moribunda estive querendo se confessar ou se manifestar em últimas palavras. Pediu misericordiosamente que Jussara fizesse um esforço de falar para que a pudesse ouvir e entender. Ela, então, enchendo de ar os pulmões, num forte e pesaroso suspiro exclamou sem reservas:
- Oh ! meu Deus, será que vou morrer sem me casar ?
Uma comoção tomou conta de todos os que estavam no quarto e não faltaram lágrimas para chorar aquele pesar. As irmãs saíram por um breve momento e, após conversarem, chamaram a mãe e o Vigário. A idéia era realizar o último desejo da querida irmã caçula qualquer que fosse o preço. E seria com Olavo. Ele não recusaria uma caridade dessas, ainda mais com súplica da família abençoada pelo Vigário.
Uma comitiva foi composta para a missão; e deveria cumpri-la logo, pois Jussara, parecia, não dispunha de muito tempo. Assim foi feito. Olavo foi procurado e convencido de sagrada tarefa, com promessa de que logo ficaria viúvo, herdando os bens da falecida e, ainda, livre para contrair, daí a algum tempo, novo matrimônio se fosse o caso. Quem protestou até o desespero foi Cremilda, mas resignou-se depois de ser repreendida até pela sua própria família. Onde já se viu, deixar uma alma como a de Jussara, partir em sofrimento.
A cerimônia foi marcada para dali a três dias, após o médico garantir que Jussara sobreviveria até lá. Jussara, então foi comunicada. Teve uma melhora surpreendente e seu semblante foi ficando menos lúgubre, até que no dia do casamento tinha um ar angelical, a tez rosada, os olhos vivos. Pentearam-lhe os cabelos, maquiaram-na e vestiram-na de noiva com os pés descalços. Era quase um anjo de branco indo ao céu, completamente imaculada, diga-se de passagem.
Aconteceu o casamento. Olavo, num ato de extrema elegância e compaixão beijou a noiva suavemente na boca. Jussara sorriu um sorriso curto, que emocionou sua mãe aos soluços e a todos comoveu. Olavo pediu que todos evacuassem o recinto, pois queria dar à sua moribunda esposa o prazer de estar a sós com seu amado esposo. Ficou algum tempo contemplando aquela mulher a quem nunca tinha dado a devida atenção, acariciando seus cabelos e segurando carinhosamente suas mãos. Pelo canto dos olha de Jussara corriam algumas lágrimas, junto com um acanhado sorriso de felicidade plena. Olavo deixou-a dormindo de exausta. Voltava todos os dias a certa hora pela visitá-la e, cada vez que vinha, notava que Jussara melhorava a olhos vistos. Já conversava animadamente, comia com apetite e começou a acostar-se nos altos travesseiros colocados entre suas costas e o espaldar do leito, até então de morte. Todos perceberam a espantosa recuperação e temiam a reação de Olavo. Ele, porém começou a se demorar mais tempo no quarto e um dia deparou com Jussara de pé caminhando pelo quarto. Reparou nas curvas sob o penhoar que cobria a camisola fina, naqueles dias de muito calor. Como nunca tinha reparado naquela mulher bonita, que o amava ? Olavo, naquele espaço de tempo se afeiçoara Jussara, abraçava-a com ternura, beija-lhe a fronte muitas vezes, quando estavam juntos.
O amor e o destino se aliaram decisivamente neste caso curioso. Jussara se recuperou completamente do mal que a acometeu, tornou-se uma mulher exuberante, uma balzaquiana redimida e feliz. Teve como Olavo uma vida alegre e dois sadios filhos e viveram felizes até que a morte os separou. E não foi a de Jussara. Olavo partiu dessa vida primeiro e deixou Jussara mais de quinze anos viúva, até que se juntou a ele.
A vítima do destino foi Cremilda. Esta entristeceu de tal maneira, que não se interessou por mais ninguém ficando, até os fins dos seus dias, solteira.

sábado, 18 de abril de 2009

Tempo de colheita

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Sonhei que morria e morrendo
supliquei a Deus que me poupasse
da morte e daquele cenário horrendo

Resolveu ele ouvir antes que evitasse
mas não veio pessoalmente escutar
mandou em seu lugar um oráculo

Um ser de olhos diamantados
agitava seu majestoso báculo
ao relato dos meus pecados bramia

Durante todo aquele espetáculo
minh’alma deplorava e gemia
a dor que cada palavra carregava

Na solidão daquela agonia
numa visão espetacular de fatos
o enredo da minha existência eu via

E como num imenso delírio
ora em filme, ora em retratos
perplexo tremia ante os fatos

Ali moribundo a tudo ouvia
o que o oráculo vaticinava
mesmo quase falecido compreendia

Era tempo da colheita aquele dia
da semente semeada
eis por que minha vida findava

sexta-feira, 17 de abril de 2009

PROVAÇÃO DA RUA SANTANA

A Rua Santana
em Itabira do Mato Dentro
não foi a maior penitência
que Deus me deu
minha irmã
anos a gastar pedras de ferro
sobe-e-desce a rua-morro
vai-e-volta do pé da Matriz
ao Valério Doce
primeiro para o Zeca Amâncio
depois ao Colégio de Ma Mère
Cristo na Cruz sempre nos esperando chegar
lá no Pico do Amor
sinal de Deus em meu caminho ?
Eu não fiz promessa desse sacrifício
passando todo dia pelo Ponto dos Aflitos
eu não fiz promessa
A Rua Santana
Não foi única penitência minha
Rosa na janela da casa-da-ponte
linda para os nossos olhares
Rosa fumava, sorria e fumava
onde estará Rosa ?
voltou para roça
e não me quis
Essa penitência que Deus também não quis
é provação de itabirano do Campestre

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Quase milagre !

Parido num parto difícil
progênie negra, nativa, européia
duvidosa
vasta prole o seu bando
cresceu pelos campos
a correr do sarampo
e da peste que aleija meninos

Quase milagre I

Desgraçado!
mil vezes desgraçado.

a vida lhe deu tréguas curtas demais
para descansar
longas batalhas
longas demais
para vencer

Quase milagre

Desgraçado !
Teu fardo é chumbo

Teu caminho é pedra
Horizonte é chuva

Não há planícies só montanhas
Não há descanso só jornada
E ainda vives !

Quase milagre

terça-feira, 14 de abril de 2009

Planeta Terra

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Imerso na escuridão infinita
o planeta avança impetuoso
pela longa trilha rotunda
impassível na própria eternidade circular
numa velocidade de fazer impar

Nos arredores orbitais do astro
um mar de nada e tudo
impio com a vida e a morte
mistura ambas numa receita eterna
inescrutável inaudita
num estado ( ou ação)
que nenhum verbo incoativo
pode exprimir

Sob o olhar desatento do homem
o universo se expande veloz
galáxias se distanciam
nascem os sóis
morrem estrelas

Nessas notícias que chegam
pela luz que viaja
nas trevas do éter desde os confins

Não há nenhum vestígio do criador
a não ser a suspeita de que
existe pelo menos um Deus
orquestrando tamanha obra
ele estaria lá em algum lugar-luz
se distanciando também
cada vez mais longe

Para além da curiosidade
milhares de anos passarão
na procura por Deus
a humanidade condenada
por uma fé
fundamental e abalada
vasculhará o espaço celeste
sem nada encontrar
a não ser seu próprio vestígio
seu próprio destino
de colonizar o universo

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Questão de palavra

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É tudo questão de palavra mesmo
a beleza descreve o olhar que apura
a paixão revela o mudo coração
o grito denuncia a dor que inflinge

É tudo questão de palavra mesmo
o ciúme confesso na mente obscura
o ódio remido no anúncio do perdão
a franqueza desmantela o que a mentira impinge
e a mentira graça a esmo

É tudo mesmo questão de palavra
Cala-te ! palavras engolidas
o corpo fala em gestos
a alma em palavras
intensa a dor no peito
orgulho pisado
campo minado
expressa-te ! palavras explodidas
é guerra
guerra de palavras
insulto, mantra, xingo, canto
interjeição dos sentidos, espanto
urro, clamor da bocas exaurido
o que não é falado não é ouvido

É tudo questão de palavras mesmo
esse discurso do reducionismo
infere singularidade do dizer

domingo, 12 de abril de 2009

Além de que ?

ALÉM DA FOME

Ser o juízo do mundo
enquanto o mundo se diverte
é mergulhar profundo
num oceano inerte

Ademais passa de presunção
coisa da tua arrogância
ensimesmado nessa ignorância
imaginas revolucionar a revolução

Qual revolução ?
perguntarias sem saber
que há uma dentro de cada ser
dinâmica da emoção

E para esta angústia queres repostas
ainda resistes nesta postura radical
desejas ser o último a dar as costas
e te tornares estátua de sal ?
Existe, não respostas, mas pistas
suficientes para que já não desistas
até que o tempo te estorve:
algo mais que a fome te comove

sábado, 11 de abril de 2009

Sonetos aos domingos

SONETO DO CORAÇÃO

Lá longe um tambor ecoa
toque de recolher
dá vontade, com o ouvido à toa
seguir esse tum-tum bater

Invoca essa cadência
a penetrar num turbilhão
toca o clamor da ausência
a marcha por um forão

som longínquo de quimeras
batidas do coração
ato contínuo nas veias, no peito em recessão.

Não falha este velho coração
Continua afora o compasso
Sem tempo, sem exasperação



SONETO DO TEMPO PERDIDO

Contenta da felicidade o pêndulo
nos extremos de corações opostos
nem tanto pela ausência de âmago
que pelos seus mais tacanhos pressupostos

Segue a tocar nos batentes
em freqüência atemporal
balouçando entre virtudes decentes
e o mais escorregadio lodaçal

No limite da felicidade a aventura
encerra o ato desce o pano
para na vida, à certa altura, omitir o profano.

Hora do badalo que produz o tempo
tempo entre os batentes de amor e ódio
vida refém desse tal relógio

O que é eterno ?

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AURORA DO ETERNO


(a Carlos Drumond de Andrade)


De manhã
o Poeta adormecido não despertou
luz do Sol
aurora dos pássaros
claro horizonte
rumor das gentes
nada despertou seu sono
o sonho último eterno.

Acordam palavras órfãs
trovas e crônicas nasceram
não vão amadurecer
frases soltas no tempo
prosas arrependidas
nunca mais vazarão da pena

Noite de lua
cheia de prata de noite inteira
ah! vida matreira
conflitos d’alma
amor exala dos corpos que gemem
o dia vem vindo
outro dia
retrato na parede

Amor eterno
o que é eterno?
Yayá diria ser
eterno é você.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Renascer das cinzas

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CINZAS DO DESPEJO

Foi assim de repente
mamãe descobriu o pulguedo
seguindo indiscretas pistas
até o Quartinho de Despejo:
pulgas se multiplicavam

caçavam por toda a casa
quintal e até vizinhança
cães, gatos, pássaros e gente
sangue quente
praga de pulgas !

De onde vieram tantas ?

Foi a Queixuda ! Feiticeira !
Mamãe desconfiava muito:
a vizinha de baixo

Queixo proeminente
baixa estatura
semblante aflito ainda que calma
Olhar sôfrego incerto
de bruxa

Eu tinha quase catorze anos.
Papai tentou salvar alguma coisa
e havia muita coisa no Despejo
livros, álbuns de família
lembranças do Espírito Santo

A única fotografia da Vovó Hortência
com o Vovô Benedito
felizes mesmo sem saúde
distantes e sem medo
da morte e das pulgas

Papai foi duramente atacado.
Atearam fogo ao Despejo.
Muita gente foi ver.
A fumaça cobriu o céu.
Tudo queimou

Não me lembro da Vovó Hortência
perdi a lembrança no incêndio
perdi também meus primeiros poemas
queimaram ainda em estado bruto
inéditos no meu caderno de sétima série

Foi a primeira grande perda da minha vida
Aí, para continuar
para sobreviver
Tive que renascer
das cinzas do Despejo

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Lembranças de um pequeno burguês

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E procuro agora a raiz
engenho do meu ser
mamãe me ensinava a ser feliz
querer, escolher, querer
apuros da ingenuidade

Papai mestre da infelicidade
ministrava o não-ser
insubmissa ordem do dever
tirou-me a passividade

Foi um crescer sofrido
mas não insosso
tempero ardido
rebelde bom-moço

Daquele idílio operário
tudo, tudo se desfez
até o mais ralo desse colorário
abandonou-me a crítica de vez

E cai o muro
o sonho tinha seu hemisfério escuro
o que resiste é estupidez
e essa vergonha de ser pequeno burguês

quarta-feira, 8 de abril de 2009

PARATÍ

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ENQUANTO TE ESPERO

É longa a espera por ti
Assim, lentamente, tonto de ansiedade
fico a dissecar teu ser

Começo a desmontar tuas partes
a ver o complexo do teu ser orgânico
a conhecer teu intrínseco

Da metodologia da investigação
primeiro é saber se por trás dos teus verdes olhos
enxergas o outro e o mundo colorido
e, pois, se com cor a visão não é míope

Segundo é constatar, na retaguarda da visão
o que dá consistência ao que vislumbras
além da névoa dos sonhos e da ilusão

Faço assim – depois nenhum rigor mais
Procuro, então, pelo mecanismo que faceia teu rosto
suaviza teu beijo e lhe dá um gosto etéreo

E mais:
estudo o comando mágico
que regula a maciez do teu toque
Por último, tento descobrir a fonte líquida do teu cheiro

E tu chegas e me cura.
Eu te remonto e, sem desvendar
o segredo da tua essência, vou te amando.

terça-feira, 7 de abril de 2009

PEQUENINOS

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CRESCE UM POETA

Quando eu for poeta
quero ser Machado de Assis
um grande romancista
que ser Manoel Bandeira
um grande cronista
quero ser Olavo Bilac
Cassiano Ricardo
Cecília Meireles
Castro Alves
grandes poetas
Mãe ! qual o seu poeta preferido ?
É o Carlos Drumond de Andrade
Vou ser igual a esse aí, viu Mãe ?
Mãe ! me ensina a ser poeta ?

..

MAMÃE, SOU EU ?

Mamãe, sou feio ?
Não queridinho, quem disse ?
Minha testa é grande !
Não é não!
Cabelo ralo !
Só muito lisinho !
Nariz torto !
Afiladinho !
Beiço fino!
Boquinha delgada !
Queixo pontudo !
Queixinho lindo !
Olhos esbugalhados !
Muito vivinhos !
Mamãe, sou feio !
Nenê fofinho !
Que magreleza !
Melhor que gordinho !
Pés chatos !
De anjinho !
Mamãe, eu sou lindo ?

segunda-feira, 6 de abril de 2009

POESIA EM TODO LUGAR

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Onde tem poesia ?

Vamos brincar de encontrar
onde tem poesia
de noite e de dia
em qualquer lugar ?

Pois bem
observem as cores
que pintam as flores
mas olhem bem

Agora sintam o vento
que gira catavento
faz pipa voar
e árvores balançar

e as gotas de chuva
o doce da uva
o sol da manhã
morder a maçã

Seu cãozinho latindo
seu gatinho esticando
você brincando
a mamãe chamando:
o almoço está esfriando !

Quando chega a hora
você vai à escola
tem prova, e agora ?
quem estuda não cola

Colegas e amiguinhos
se vendo se falando:
tem gente que está namorando !
mas ainda são tão novinhos !

E de noite , quem tem medo ?
tem gente que dorme tarde
tem gente que dorme cedo
Olhe quanta estrela no céu
são tantas que parece véu

E o sono chegando
seus olhos fechando
um sonho vai entrando
o breu cobre a folia
Ai, boa noite poesia !

domingo, 5 de abril de 2009

POR UNS OLHOS CLAROS

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PEQUENA SEDUÇÃO

Fulguram luzes, viajam leiseres
quando teus olhos procuram
o objeto dos teus desejos.
Os teus olhos curam !

Citilam cores femininas
riscam o éter estrelas luzentes
Como o céu lhe entrou pelas retinas
menina ?
Mirá-los ( teus olhos)
é impacto de astros cadentes

Porque me olhas de um jeito
penetra meu couro
me arde o peito ?

“Tolo, é só uma pequena sedução
provoco a ti, às vezes
para disparar meu coração”
dizes

sexta-feira, 3 de abril de 2009

EXISTÊNCIA

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INSULTO À EXISTÊNCIA

Afora o que amealha a riqueza
afora o que agride a violência
afora o que alcança o talento
afora o que afortuna a sorte
da emoção ao contento
resta um esperar lento
do nascimento à morte
resta com muita certeza
um insulto à existência
um existir medíocre
um viver biltre
de atrofiar a beleza
de cultuar avareza
nascer sadio e morrer doente
de corpo e mente

intacto dote de sentimentos
desperdício
esperança impacto da rebeldia
suplício
resposta ao chamamento
palavra
a boca chama
grito
o tempo crava
sangue
muros da covardia
limite

afora o que a ousadia
permite
tudo não feito
encerra
nesse corpo perfeito
alimento de terra

quinta-feira, 2 de abril de 2009

PORQUE PORQUÊ POR QUÊ PORQUE ?

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PORQUÊ DE TUDO

Mira teu olhar agudo
onde há convicção e clareza
mas mira atento e mudo
veraz o olhar absurdo
desconstruir a certeza
Acabou teu tempo de surdo

As coisas te farão barulho
como um imenso vagalhão
expostas ao esbulho
as verdades desaparecerão
nada mais soará razoável
mesmo o mais provável !

Em tua cabeça onde havia
uma fé reprovável de se ter
uma semente de sabedoria
pedirá para brotar e crescer
uma fome rotunda de saber
pedirá o por quê
porque tudo assim seria

Porquê de tudo não há !

Há sim nessa criação
um curioso descompromisso
com a verdade e a informação
qual se Deus fosse omisso
sobre o ser e a existência

E o tudo é experimental

ser, viver, saber, morrer
porque o limite é fundamental ?

terça-feira, 31 de março de 2009

PALAVRAS, PALAVRAS...

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SEDUÇÃO DAS PALAVRAS

Oh! palavras, palavras
seduzem - me
eu as quero nuas
desfilando de frente
passando de costas
rolando em minha cama
verbetes chamando

Oh! palavras, palavras
entrem pelos olhos
adoráveis ninfas
escorram em mim maduras
apartarão de mim anciãs
pela boca e mãos

Oh! palavras, palavras
de todo calão
adúlteras catarinas
paquequer, guaicurus, guarani
escada de meretrizes.
subi e amei

Oh! palavras, palavras
proibidas, reprimidas
horizonte cinzento
vigiadas, punidas
silêncio imposto
corri e gritei

liberdade imposta
numa janela aberta
niguém desperta
o vazio voa
desconsolo à mostra
Ó palavras, palavras
viví e calei


HORIZONTE DAS PALAVRAS

Toda palavra, além da fachada
contexto significante
literalidade e sinonímia
é mais que apenas efígie

Por trás da porta que a atravessa
da chave que a destranca
há palácios, há ruínas
selvas e montanhas

Contam os antigos
lendas sobre o horizonte das palavras
depois do encontro do céu e terra
além dali, no improvável

Há palavras e expressões nunca exploradas
enterram tesouros, obras inteiras
perdidas no deserto árido do inédito
intactas sob gelo da imaginação.

segunda-feira, 30 de março de 2009

MEU HERMANO WALTER

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DE PAZ, DE CORAÇÃO

Por eu ser assim
de paz, de coração
eu amo as pessoas
e quanta gente mais

vier de onde eu vim
de um lugar
onde o amor
é o primeiro sentimento
que se sente
ao abrir os olhos

Por eu ser assim
se paz, de coração
eu só lamento
ver tanta gente assim

que não viveu esse
momento de harmonia
entre o ser e a crição
esse instante de magia

onde a vida sopra vida
nos põe no vento

domingo, 29 de março de 2009

O QUE É SER POETA ?

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MEU CARO BARDO

Tua poesia não precisa de forma
e tu não precisas de um estilo
não podes criar sob uma norma
mas antes de o dar a lume deves senti-lo

Se te vem em prosa que prosa seja
que seja soneto se um soneto é que desenha
pois bem, agora veja:
não deixes de o escrever qualquer que venha

Tua memória é um pasto
não importa qual capim
se relva tenra é teu latim

lança-te ao mundo
anuncia-te meu caro bardo
fujas de ser um poeta tardo !



PRENDAS POÉTICAS

Não vos obrigueis aos versos
tampouco deveis escrever por empreitada
para não acontecer de vos escravizardes
pela palavra e ela vos dominar
deveis, ao contrário, cavalgá-las
docemente, sem freio, esporas, arreio, em pêlo

Se iniciais vossas prendas poéticas
deixai escrever toda palavra, todo verso
todo poema, toda prosa
deixai assim sair como colostro
antes do leite mais puro
Os primeiros serão, quase sempre, desabafo e desatino

Quanto mais escreverdes tanto mais primor.
Talento é luxo das virtudes.
Não espereis condecorações
nem prêmios ou méritos
o mundo é infame
leitores escassos

Evitai o escárnio, deletério, ultraje,
bajulação, incensação, arrogância
poderíeis atrair apatia, adoecer almas

contudo, nada vos é defeso
apófases, catáfases, antônimos
e tudo mais que for expressão vossa

Não declineis, nunca, à ignorância
podendo, doai livros, emprestai dicionários
jogai uma corda
a palavra acolhe
a palavra cura
a palavra salva

sexta-feira, 27 de março de 2009

SEXTA DA RIMA

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CONFLITO DA RIMA

Rimar ou não rimar ?
eis uma questão literária
existencial na poesia
aquém de modernismo
e estilos de época

Rimar ou não rimar ?
eis a questão salutar
retrocedente
ulterior
recorrente

Sem rima é o texto
terminais abertos
narrar de contexto
períodos e frases
não-versos

Rimar ou não rimar ?
masculina, emparelhada
feminina, alternada
aguda, consoante
coroada, toante

Rimando exulte
sem nenhum escrúpulo
ante quem exaltado avulte
ser esdrúxulo
rimar dissonante

Rimar ou não rimar ?
opulenta, intercalada
interpolada, pobre
cruzada, encadeada
popular, nobre

Herdado no sangue lusitano
conflito de além-mar
do soteropolitano
para a nação a espalhar
a pensar da poesia:
rimar ou não rimar ?

quinta-feira, 26 de março de 2009

DE CORPO E MENTE E ALMA

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ELOGIO DAS NÁDEGAS

Nádegas,
creem estudiosos no assunto
não estão no corpo num simples estar junto
mas como importante e vistoso adjunto

Às nádegas
deem alcunhas e nomes
apodos os mais infames
popa, buzanfa, bunda
mas elas guardam grande e profunda
relação de construção e identidade
com a personalidade

Nas nádegas,
leem pessoas entendidas
todas as emoções e dissabores
conforme estejam exuberantes
ou contraidas

Nas nádegas veem
quem as observam testo
juntos coração e mente
e isso desmente, categoricamente
o abismo entre intenção e gesto

Nádegas vêm
passam desfilando grudadas nos sexos
as fêmeas não as disfarçam
deixam os machos perplexos
abusam de sua potencia
que potencia as nádegas têm !

Nos gomos que se abraçam
cada modelo é exclusivo
se pouco apelo contêm
ou rebolado agressivo
naquilo que às nádegas convêm
de ser o gostoso cativo

quarta-feira, 25 de março de 2009

Identidade

O pico que sumiu

Eu nasci numa cidade
lá na Serra do Esmeril
perto de Capoeirana
e de um pico que sumiu

Uma poeira desse pico
matiza o céu azul de anil
eu só conheci metade
desse pico que sumiu

Para onde levaram o pico ?
qual deu o arrancou varonil ?
O homem remove montanhas
depois se descobriu

Foi assim que o pico sumiu

terça-feira, 24 de março de 2009

SE PUDER, TODO DIA UMA POESIA !

Tudo aquí expresso e exposto é de minha autoria.
Se não for merecerá aspas.

Um dia sonhei ser poeta, escritor
mas veja, leitor
sonhos acabam em poesia.

Daqui da internet
na minha festa de babete
será um poema por dia

do que leu
Vou saber se gostou
pelo que postou

Aí vai...


DERRADEIRA POESIA

I

Escrevo de modo derradeiro.
Cabal. Qual se na vida
último dia a morte chegada
ceifa em punho
aguarde o último verso
decisiva palavra.
Tudo é o que fica pronto

Havendo outro dia
o que foi não conta
outra etapa
outra história.

A sobrevivência esfaimada
devorou o talento
sua fome desvairada
o fez de alimento

Nesse tormento
trabalho todo dia
minha poesia
garimpo, lavro, lapido

apesar do trabalho sofrido
nem sempre tenho gema
não raro o poema
é um belo pedregulho

Sobre aquele entulho
às vezes, choro o espúrio
e me demoro a ver ali augúrio

escreverei o tempo
da visão do outeiro
quando abrir a porta
entrarei primeiro

já não há rota
nada surpreende
a poesia se esgota
mas transcende

II

Uma poesia faminta
devoradora, parasita
aflita, reprimida
um jogo de palavras
desfalque de dicionário

Incômoda da literatura
supérflua para minha classe
e mais, que disseram :

Ignorada que é inédita
inédita que não se conhecerá
um canto maldito
incompreensível. Será ?

Apodrecendo por fora
intacto por dentro
sem motivo para orgulho
sem causa para revolta

III

Todo dia, assim vagueio
volto àquele turbilhão
Escavo um pouco aquela mina
na esperança de veio

Sob um lume que ilumina
Repasso palavra por palavra
ensilo a sieba, mas não descarto
que é para os dias difíceis de lavra

Esse fórceps de alívio de parto
de extrair rima e remorso
o estopim, o explosivo
essa canga no dorso

Um comportamento invasivo
Expressão pueril
Esse alforje de ferramental
sujo de esmeril

E o jeito mineiro de querer:
garimpar quando escreve
minerar quando pensa
É doce herança itabirana

segunda-feira, 23 de março de 2009

Para comerçar..

Sem foto, sem editor, sem perfil, rendido
um ego opaco, uma vaidade caida
só uma vontade de ser lido

Subi um morro, desci uma rua
ela não tinha saida
olhei entre o muro e a lua

Vi numa via larga sem largura ou comprimento
gente sem corpo, como que por magia
lia ! como nunca se viu em nenhum momento

Pensei: para que chorar por um livro
pelo amor do editor, se alí convivo
diuturnamente com o leitor

Farei minha festa de babete
com a minha poesia
aqui mesmo na internet